domingo, 22 de fevereiro de 2009

O significado dos números sobre o aquecimento global

Uma matéria de hoje (22) na Folha de S. Paulo sobre o aquecimento global me levou a destrinchar um pouco o significado dos dados sobre isso e como eles são obtidos. Consegui fazer um pequeno esquema mental sobre isso e gostaria de dividi-lo com os leitores. O texto abaixo acabou virando uma exposição sobre a natureza de boa parte da pesquisa científica em geral.

Auxiliou-me nisso alguma experiência que tive com simulações (cálculos) computacionais quando eu fazia pós-graduação em física. Essas simulações têm características comuns com as da meteorologia. O fato de o esquema ser partilhado por muitos tipos de pesquisa científica também ajudou.

A matéria da Folha, escrita por Eduardo Geraque, fala sobre os resultados de uma pesquisa apresentada por Anny Cazenave em uma reunião da Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS), que terminou na semana passada. A pesquisa mediu a velocidade de subida do nível dos mares entre 1993 e 2008 e o resultado (3,4 mm por ano) deu quase o dobro do que se mediu entre 1950 e 2000 (1,8 mm por ano)! Além disso, sua previsão de quanto os mares deverão subir até 2100 (1,8 metro) é mais do que o dobro das previsões “oficiais” do IPCC para aquele ano (na pior das hipóteses, 60 cm). Vejamos o significado disso.


O que é o aquecimento global e o que ele faz

Primeiro, algo sobre a natureza do aquecimento global. Ele é causado por emissões, para a atmosfera, de gás carbônico (CO2) e outros gases, chamados “gases-estufa”. As medidas indicam que sua quantidade vem aumentando fortemente durante o século XX. Esse aumento "desregula" a principal “função” desses gases, que é manter o planeta aquecido, numa temperatura boa para a vida – o chamado “efeito-estufa”. A temperatura média da Terra, então, começa a subir.

Isso não tornará a vida inviável, mas deverá provocar mudanças no mínimo bastante incômodas. Além de desencadear diversas mudanças climáticas de vários tipos, o aquecimento deverá também elevar o nível dos mares, por causa do derretimento do gelo das calotas polares e da dilatação térmica da água. A elevação dos mares deverá inundar várias cidades costeiras nos próximos séculos. O IPCC avalia que a probabilidade de o aquecimento global ser causado por emissões de gases estufa causadas pelo ser humano é de mais de 90%.


O que faz o IPCC

Bem, IPCC é o Painel Internacional sobre Mudanças Climáticas, um órgão da ONU criado em 1988, dedicado a elaborar sínteses das pesquisas sobre isso feitas pelo mundo todo, tentar identificar as suas causas e sugerir ações baseadas nessas avaliações. “Painel” é um conjunto de cientistas de várias áreas para estudar certo assunto. O painel do IPCC tem cerca de dois mil pesquisadores. As principais sínteses – os “Relatórios Avaliativos” – são publicadas de seis em seis anos, tendo o último sido em fevereiro de 2007.

O IPCC pega os estudos científicos dispersos pelas publicações especializadas (como os divulgados por Cazenave) e faz projeções e médias para extrair do conjunto uma avaliação geral de como andam as coisas no clima mundial e o que os governos poderiam fazer para diminuir os riscos e os efeitos de uma catástrofe ambiental.


O que fazem as pesquisas individuais

Cada um dos estudos que o IPCC coleta fazem basicamente três coisas:

(a) medidas
(b) projeções (previsões)
(c) correlações

O resultado divulgado pelo grupo de Cazenave fez as três.

Muitos artigos fazem também sugestões sobre o que fazer, que estratégias adotar, baseados nos seus resultados.


(a) Medidas (que devem ser devidamente interpretadas)

As medidas podem ser de temperaturas, níveis dos mares, concentração de CO2 na atmosfera etc. Elas podem ser:

(1) medidas feitas no presente ou
(2) determinações sobre como eram as coisas no passado, antes dos primeiros registros de temperaturas, nível dos mares etc. (em geral, antes do século XX)

As do estudo apresentado na AAAS são medições diretas do nível dos mares, feitas no presente, de 1993 a 2008, com o auxílio de satélites artificiais.

Para as medidas sobre como eram as coisas no passado, é preciso procurar em lugares que possuem registros de como elas eram. Por exemplo, a composição química do interior de recifes de corais dá indicações sobre a temperatura dos mares nos séculos passados. Isso porque os corais vão crescendo bem lentamente e seu metabolismo e sua composição são influenciados pela temperatura da água.

As medidas, especialmente as indiretas, devem ser interpretadas para poderem significar alguma coisa. No caso acima dos corais, por exemplo, deve haver uma teoria por detrás que diga como associar a composição química dos corais com a temperatura. Aí, entram os estudos dos oceanógrafos e biólogos (é por essas e outras que as mudanças climáticas são um estudo fortemente interdisciplinar). Ou seja: observações são interpretadas de acordo com teorias.


(b) Projeções

Com base nas medidas, fazem-se as projeções. Estas são feitas com programas de computador. Alimenta-se os programas com os resultados das medidas e, após algum tempo, o computador produz dados sobre temperatura, nível dos mares, concentração de CO2 etc. para o futuro. É daí que vêm as previsões de quanto o nível do mar vai subir nos próximos cem anos ou mais. Os cálculos chamam-se “simulações computacionais” – elas “simulam” de forma aproximada o comportamento da Natureza. Os programas dos computadores usam equações que são produzidas por estudos teóricos – que, por sua vez, levam em conta os resultados das medidas.

Acontece que os cálculos para se fazer essas projeções têm duas complicações principais.


Os cenários

Primeiro, o que vai acontecer no futuro é influenciado pelas transformações futuras da tecnologia, da economia e da sociedade. Evidentemente, isso é desconhecido. Então, faz-se vários “cenários”, ou seja, vários conjuntos de hipóteses sobre isso. As diferenças entre os cenários nos estudos sobre mudanças climáticas têm a ver principalmente com hipóteses sobre o desenvolvimento econômico do mundo. Por exemplo, se a economia passar a se concentrar rapidamente no setor de serviços, o setor industrial pode ser aliviado e, assim, poderá haver menos emissões de gases-estufa – e menos aquecimento.


Os modelos

Segundo, os cálculos são terrivelmente extensos, mesmo para os computadores atuais. A previsão meteorológica é uma área que demanda um esforço computacional verdadeiramente brutal. É impossível fazer as contas com precisão total – para isso, seria necessário um tempo muitas vezes maior que todo o tempo transcorrido desde o Big-Bang até hoje...! É preciso fazer simplificações. Imagine se a forma de todas as montanhas do mundo tivesse que ser colocadas nos programas...!

Algumas coisas podem ser simplificadas sem grandes mudanças no resultado final. Outras, não. Por exemplo, é claro que os detalhes do relevo não devem ser importantes – eles influenciam pouquíssimo o resultado final dos cálculos. Porém, os oceanos não podem ser ignorados, eles são grandes demais.

Isso é um exemplo simples. Em geral, as coisas são muito mais complicadas e não é fácil saber que simplificação pode ser feita e que efeitos elas terão no resultado final. Por isso, há vários “modelos” diferentes para tratar o assunto. Cada um deles dá peso diferente para vários parâmetros. A palavra “modelo”, na verdade, tem significado mais geral na ciência e é fundamental em qualquer pesquisa científica. Trata-se de um conjunto de hipóteses sobre o objeto de estudo, sem as quais nenhuma pesquisa consegue funcionar.

A escolha dos modelos não é arbitrária. Para ver se são bons, pode-se:

(a) Testá-los: compara-se previsões baseadas nos modelos com resultados que já existem.
(b) Comparar as previsões com vários modelos diferentes. Se houver divergência demais, há problemas com pelo menos alguns deles.
(c) Esperar que o tempo passe e ver se as previsões se confirmam.


Os métodos computacionais

Além das simplificações no que deve ser colocado ou não como dado de entrada no programa do computador, em geral as próprias equações usadas pela máquina têm que ser simplificadas. Cada um deles têm a ver com o que eu poderia chamar de um “método computacional”. Mas, no caso da meteorologia, suponho que haja razoável consenso sobre que método de cálculo é melhor, já que não vejo menções a isso.


(c) Correlações

Correlações entre as observações podem ajudar a identificar causas de fenômenos. Um exemplo muito simplificado: se a concentração de CO2 na atmosfera aumenta mais ou menos paralelamente ao aumento da atividade industrial, é bem provável que haja alguma ligação entre as duas. Em geral, as associações são muito mais complexas e exigem tratamentos estatísticos sofisticados e também – como as projeções – teorias, modelos e métodos computacionais.


Os resultados das pesquisas variam

Assim, diferentes trabalhos científicos podem dar diferentes resultados para a mesma coisa. Por exemplo, duas pesquisas podem mostrar resultados diferentes para as previsões do nível dos mares. Essa diferença, em geral, é devida à soma de fatores como estes:

(a) métodos de medidas diferentes produzem resultados diferentes para o mesmo parâmetro. Medir o nível dos mares com satélites artificiais é diferente de medi-los da praia.
(b) teorias diferentes para interpretar as medidas. Teorias distintas para associar composição de corais à temperatura dos mares podem produzir diferentes temperaturas “medidas indiretamente”.
(c) parâmetros diferentes colocados no programa do computador. Um cientista pode tentar prever a temperatura a partir da concentração de CO2 na atmosfera; outro pode usar dados sobre temperaturas de séculos passados obtidas em corais; outro pode usar os dois tipos de dados.
(d) cenários diferentes.
(e) modelos diferentes.
(f) métodos computacionais diferentes, se for o caso.

Muitas vezes, pode-se determinar quais desses fatores são mais relevantes. Em outras situações, é preciso esperar estudos mais aprofundados para isso. Após se ter determinado os porquês das diferenças, pode-se fazer comparações melhores entre eles e articulá-los para produzir previsões médias, como faz o IPCC. Porém, o IPCC costuma separar os resultados de acordo com o cenário e, às vezes, também de acordo com os modelos.


O IPCC faz várias projeções dependendo do cenário e do modelo

Assim, o IPCC não faz só uma projeção, faz várias, e cada uma delas corresponde a um tipo de cenário e modelo. Além disso, às vezes, tira-se uma média entre os modelos e discrimina-se o resultado apenas de acordo com os cenários. Por exemplo, o Relatório Avaliativo do IPCC de 2007 mostra seis números diferentes para a elevação do nível dos mares até 2100, cada um associado com um cenário. Eles variam de 40 cm, no cenário mais “otimista”, a 60 cm, no cenário mais pessimista (vide página 821 do capítulo 10 do Quarto Relatório Avaliativo do IPCC (o de 2007), volume do "Grupo de Trabalho I: "As bases científicas físicas" ).

Quão confiáveis são os dados do IPCC? Uma maneira de saber é esperar o tempo passar e verificar em que extensão suas previsões se confirmam. Ora, algum tempo já passou desde o primeiro Relatório Avaliativo, de 1995. Em fevereiro de 2007, um artigo publicado na Science mostrou que, entre 1990 e 2006, mediu-se um acréscimo de 0,33 graus Celsius na temperatura média dos oceanos. Isto estava dentro do conjunto de previsões do IPCC. Estava, porém, perto das projeções mais pessimistas. Já a elevação do nível dos mares, segundo o mesmo artigo, foi de 3,3 mm/ano. Aí houve discrepância com o IPCC: este previa um máximo de 2 mm/ano. Há uma reportagem de Marcelo Leite na Folha de S. Paulo com informações interessantes sobre isso.


Os dados divulgados na AAAS

Aqui, já é possível situar melhor o significado dos dados de Cazenave. Eles são um dos que deverão ser incluídos pelo IPCC no seu próximo relatório avaliativo, que deverá sair em 2012 ou 2013, e em outras publicações que aparecerão no caminho.

A pesquisa incluiu medidas, projeções e correlações. Algumas delas:

(a) as medidas indicam que a velocidade de subida do nível dos mares entre 1993 e 2008 (3,4 mm por ano) é quase o dobro do que se mediu entre 1950 e 2000 (1,8 mm por ano). Mas as divergências com os dados do século XX são devidas tanto à diferença nos métodos nas medidas quanto a um aumento real na velocidade da elevação dos mares.

(b) suas projeções com computadores indicam que a elevação da linha d'água até 2100 será de 1,80 metro, é o triplo da prevista pelo IPCC. Isso é surpreendente.

(c) correlações com outros dados indicaram que as causas da elevação do nível dos mares é mais a expansão térmica da água (50%) do que o derretimento do gelo das calotas (40%)

Devemos, porém, lembrar que isso é apenas um dos muitos cálculos já feitos, que usam um certo conjunto de medidas e um certo modelo para fazer previsões. Pode ser que as medidas e o modelo sejam melhores que os outros e esse resultado seja mais representativo. Mas temos que esperar algum tempo para os especialistas poderem cotejar esse resultado com os demais.

Obs.: Agradecimentos a Roberto Takata, por sugestões de correções no texto.

Um comentário:

  1. Roberto,
    Tenho acompanhado seus artigos com muito interesse principalmente por achá-los acessíveis mesmo para quem atua em outra área completamente diferente.
    Parabéns.

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