quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

A física invisível

Há uma parte “escondida” da ciência, de um tipo que jamais aparece em jornais, sites e revistas de divulgação – mas que talvez constitua a maior parte da enorme massa de artigos que aparece diariamente nas publicações científicas especializadas. São resultados “intermediários”, cuja função é desbastar os caminhos para descobertas que, essas sim, poderão conseguir seu lugar ao sol na mídia. Olhar para essas contribuições invisíveis pode dar uma idéia alternativa da natureza da pesquisa científica, diferente da que é inspirada pela divulgação não-especializada em geral.

Que aspecto tem uma pesquisa dessas? Há inúmeros tipos. Vejamos um exemplo concreto, na área teórica. Em 2 de fevereiro desde ano de 2009, um resultado bem “intermediário” sobre temperaturas ultra-baixas calhou de ser divulgado em um site semi-especializado (o Physicshttp://physics.aps.org/articles/v2/9 –, da Sociedade Americana de Física). O artigo original apareceu na revista científica estadunidense Physical Review A (número 79, artigo 023601), assinado por Shizhong Zhang e Anthony Leggett, da Universidade de Illinois, nos EUA.

A idéia do presente texto é mostrar no que consistiu essa pesquisa. É uma tentativa de se transmitir a não-físicos um pouco de com o que se parecem as lajotas “invisíveis” que vão formando as trilhas que levam os cientistas às suas principais descobertas.


Gasoso, líquido, sólido e... CBE e BCS

Zhang e Leggett investigavam a transição entre dois estados físicos novos (além dos tradicionais sólido, líquido e gasoso) que aparecem a temperaturas extremamente frias: algumas dezenas de bilionésimos de grau acima do “zero absoluto”. O “zero absoluto” é a menor temperatura possível, a 273,15 graus Celsius negativos. Os dois estados atendem por “condensado de Bose-Einstein” (CBE) e o que eu poderia chamar, por falta de nome mais prosaico, de “superfluido tipo BCS”.

As características desses estados ainda estão sendo exploradas (isto é uma das coisas que físicos como Zhang e Leggett procuram!). Mas sabe-se várias coisas surpreendentes, como: têm viscosidade zero e seus átomos adquirem um comportamento coletivo, como se “muitos” fossem “um só”. No condensado Bose-Einstein, os átomos também “coalescem” numa pequena região do espaço, como se formassem um “superátomo”.

Em tempo: convido os leitores mais conhecedores de física, que podem estar estranhando muito a presença aqui da sigla BCS (normalmente associada com a supercondutividade), a dar uma olhada na “nota” no fim deste texto.

Talvez seja melhor falar o que exatamente esses físicos estão esfriando, para tornar a discussão mais concreta. Por enquanto, só se consegue chegar a bilionésimos de grau acima do zero absoluto com amostras muito pequenas, constituídas de alguns milhões de átomos (como de potássio, lítio, rubídio etc.). Sim, “milhões”, aqui, é pequeno: pois um mísero grama de, digamos, ferro, já tem cerca de 600 bilhões de trilhões de átomos... Como são poucos átomos, ao conjunto dá-se, tradicionalmente, o nome de “átomos frios”.


Desembaraçando o coletivo do individual

Eis então no que consiste a “pesquisa intermediária” de Zhang e Leggett. Enquanto alguns investigavam a transição CBE-BCS experimentalmente em laboratório, os dois autores concentraram-se na parte matemática e conseguiram algo que costuma causar certa sensação entre físicos. Pegaram diversas expressões matemáticas usadas para calcular várias quantidades físicas relacionadas com os átomos frios – desde sua energia até a velocidade de ondas acústicas através da amostra – e conseguiram separar cada expressão em duas partes. Cada parte relaciona-se com um tipo de abordagem diferente para o estudo de átomos frios:

a) uma “coletiva”, pois envolve médias sobre todos os átomos da amostra;

b) outra “individual”, que envolve as interações entre só dois átomos de cada vez (certo, “individual” fica meio estranho, pois os átomos são tratados aos pares, mas é só para usar uma contraposição clara a “coletivo”).

Mais: para formar cada uma das tais expressões matemáticas, cada parte precisava apenas ser multiplicada uma pela a outra.

E daí? Bem, isso causa impressão entre os físicos porque eles tentam sempre escrever suas equações de modo que uma simples olhadela para elas já possa inspirar intuições sobre o que está acontecendo fisicamente e, assim, facilitar o aparecimento de idéias novas. Para conseguir isso, eles têm que descobrir um jeito de dispor os símbolos de modo a potencializar suas intuições. Separar expressões matemáticas em “metades” contendo significados bem distintos, como Zhang e Leggett fizeram, é uma das estratégias mais interessantes.

Desta forma, os dois autores arrumaram um jeito de escrever suas equações de modo a evidenciar um aspecto provocante: uma espécie de “desembaraçamento” entre as contribuições de cada uma das duas abordagens, coletiva e individual. Em geral, ambas são necessárias para calcular qualquer quantidade física, mas suas contribuições para os valores dessas quantidades costumam estar totalmente misturadas nas expressões matemáticas. Nas equações de Zhang e Leggett, estavam separadas...!

Não é interessante só porque excita intuições. Se aparecem aspectos notáveis nas expressões matemáticas que descrevem fenômenos físicos, é porque existe algum aspecto igualmente notável desses fenômenos que está se refletindo na descrição matemática. A parte mais difícil e interessante costuma ser identificar ou interpretar o que é que está sendo refletido nas equações. Mas isso já são cenas de próximos capítulos.


A função universal

Os dois físicos não pararam aí. Mostraram também que a primeira metade das expressões, aquela relacionada com a abordagem macroscópica (o item “a” acima), é a mesma (tem a mesma forma) para várias quantidades físicas que se queira calcular. Por isso, chamaram a essa metade de “função universal”.

Para ficar menos abstrato, um exemplo (meio “grosso modo”). Suponha que alguém tenha descoberto como a velocidade das ondas acústicas através da amostra de átomos frios depende da temperatura da mesma (digamos que ela triplique quando a temperatura dobra). A “função universal” descoberta por Zhang e Leggett implica em que essa dependência será a mesma para, digamos, a energia de interação de um átomo com seu vizinho (ou seja, ela também triplicará se dobrarmos a temperatura!).

Isso também é algo que chama muito a atenção dos físicos. Não só porque torna mais fácil calcular coisas. Também porque, quando algum fenômeno físico tem características relativamente universais, significa que há algo de mais profundo por detrás. Afinal, algo que independe de vários parâmetros dos sistemas físicos deve conter informações sobre princípios físicos mais gerais! Resta saber quais. Mais cenas de próximos capítulos.

Zhang e Leggett tiveram uma precursora. Sejamos justos para com ela. Como lembrou o físico Eric Braaten, na mencionada matéria no site Physics (em inglês), a existência de uma função “universal” desse tipo para descrever a contribuição da “abordagem coletiva” já havia, na verdade, sido descoberta em 2005 por Shina Tan, da Universidade de Washington, em Seattle (EUA). Mas seus estudos ficaram quase completamente ignorados até dezembro de 2008, quando foram finalmente publicados, aparentemente porque (pelo menos em parte) Tan usou métodos matemáticos novos, criados especialmente para aquele problema. Isso dificultou a compreensão, pelos outros, do significado do que ele havia encontrado. Segundo Braaten, ao que parece, Zhang e Leggett não conheciam o trabalho de Tan e conseguiram chegar a seus resultados teóricos de forma independente, desta vez com métodos matemáticos mais conhecidos. Claro que isso não desmerece o trabalho dos dois autores, muito menos o de Tan.


Para que servem as pedras

Vê-se que nada disso dá muita luz sobre que aspecto tem uma amostra nos novos estados físicos do ultra-frio. Trata-se de um típico “resultado intermediário”, pedras para pavimentar caminhos que outros físicos continuarão construindo e depois trilharão para chegar a resultados que podem, esses sim, chegar a jornais e soerguer sombrancelhas de pessoas curiosas.

Há muitos outros tipos de resultados intermediários. Alguns são como pequenos “tijolos” que vão sendo postos aos poucos na construção de uma casa. Exemplos disso acontecem, restringindo-nos ao estudo do ultra-frio, quando alguém descobre um jeito de formar um condensado de Bose-Einstein com um novo tipo de átomo, ou então chega a um aperfeiçoamento técnico capaz de abaixar a temperatura ainda mais próximo do zero absoluto, ou então consegue explicar teoricamente algum detalhe até então não compreendido.

No caso de Zhang e Leggett, a função não é bem a de um tijolo, mas de excitar intuições. O tipo da coisa capaz de fazer físicos terem idéias mais facilmente, ou levar alguém a pensar algo que não pensaria de outro modo. Certamente, esse resultado estará oculto por detrás de descobertas que virão no futuro. E nem saberemos disso! Eis um pouco de com o que se parece a “física de fora dos jornais”.


* * *

Nota para leitores mais conhecedores de física e que devem estar pensando como é que se pode formar superfluidos tipos BCS e Bose-Einstein com o mesmo tipo de átomo (e assim poder fazer a transição de um para o outro), já que apenas férmions formam BCS e apenas bósons formam Bose-Einstein. Ocorre que, em condições específicas, os átomos fermiônicos podem se associar em pares (diferentes dos pares de Cooper presentes no BCS), e pares de férmions comportam-se como bósons, de forma que podem formar um condensado de Bose-Einstein. Isto é uma descoberta de novembro de 2003. Só que, nesse caso, as entidades constituintes do condensado não são os átomos individuais, mas pares deles. Vejam o artigo de Eric Braaten no Physics para mais informações e um bom diagrama explicativo. E também: http://www.aip.org/pnu/2003/split/663-1.html


Para saber mais:

O que é um condensado de Bose-Einstein (site Prisma)

Quinto estado da matéria (revista Pesquisa Fapesp, 2004) – matéria sobre a obtenção do primeiro condensado de Bose-Einstein no Brasil, pelo grupo de Vanderlei Bagnato, do Instituto de Física de São Carlos (USP)

BEC Homepage (em inglês) – exposição bastante didática sobre como chegar às temperaturas ultra baixas com átomos frios e obter o condensado de Bose-Einstein

How the tail wags the dog in ultracold atomic gases (Eric Braaten, site Physics) (para físicos) – sobre a pesquisa de Zhang e Leggett

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