sábado, 21 de fevereiro de 2009

Calma, o Irã não construirá uma bomba tão cedo

Jornais do mundo todo anunciaram: o Irã tem urânio suficiente para fazer a bomba atômica. A fonte seria a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), um órgão da ONU que fiscaliza os programas nucleares dos países. Susto, pois esse país é acusado, principalmente pelos Estados Unidos, de ter um programa nuclear militar (já sofreu três sanções da ONU por causa disso). Porém, o anúncio é inverídico! Não, o Irã não tem urânio suficiente. Os próprios jornais contradizem, no corpo do texto, os títulos de suas matérias. Vejamos.

Primeiro, a razão pela qual o Irã não pode usar o urânio que tem para fazer bombas é que o urânio necessário para isso é diferente do usado para, por exemplo, fazer reatores de usinas nucleares. A diferença é a proporção entre dois tipos de urânio: o urânio 235 e o urânio 238. Os números referem-se à quantidade de prótons e nêutrons somados existentes no núcleo de seus átomos (lembrando que o átomo é formado por um núcleo ao redor do qual os elétrons se movem). O número de prótons é o que define se o material é urânio, ferro, ouro etc. O número de nêutrons apenas altera algumas características físicas, como densidade ou radioatividade.

No caso de uma usina nuclear, o urânio necessário é uma mistura de cerca de 5% de urânio-235 e 95% de U-238. No caso de bomba atômica, é de 80 a 90% de U-235 e 10 a 20% de U-238. Uma grande diferença.

O que disse a AIEA, ou melhor, um funcionário da ONU próximo da agência (que foi a fonte a que os jornais se reportaram) foi que o Irã tem urânio de baixo enriquecimento (no caso, menos que 4%) em quantidade suficiente para que se pudesse fazer uma bomba atômica caso fosse devidamente processado para tornar-se altamente enriquecido (mais de 80%). Isso apareceu em alguns jornais, como o britânico The Guardian. Acontece que isso poderia ser dito de qualquer país com urânio suficiente no subsolo! Se todo o urânio brasileiro fosse enriquecido, poderíamos fazer um arsenal inteiro de armas atômicas. Acontece que enriquecer urânio não é fácil. Principalmente porque o urânio encontrado na natureza tem apenas 0,71% de urânio-235.

Para enriquecê-lo, usa-se “ultracentrífugas”, aparelhos que giram rapidamente recipientes onde ele é colocado, de modo que a força centrífuga concentra a parte mais densa (o U-238) em um dos lados dos recipientes. Aí, basta recolher a parte do outro lado, que tem concentração maior de U-235. Parece fácil, mas, mesmo para chegar a 5%, as máquinas têm que ser poderosas – por isso são “ultra” – e funcionar durante muitos meses ou mesmo anos. Para se ter uma idéia, um conjunto (uma cascata) de 850 a 1000 centrífugas levam um ano para conseguir produzir entre 20 a 25 quilogramas de urânio altamente enriquecido – quantidade suficiente para uma bomba – segundo um texto da Global Security (em inglês).

Curiosamente, a citação correta do funcionário da ONU é feita em várias matérias jornalísticas de várias formas, mesmo com a manchete falando que a AIEA teria dito o Irã tem urânio suficiente para fazer a bomba. O Estado de S. Paulo, por exemplo, fala que “o relatório da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) disse ter sido descoberto 209 quilos adicionais de urânio de baixo enriquecimento”. Detalhe: de “baixo enriquecimento”. Pode-se também dar uma olhada nos links abaixo...

Conclusão: quando gente poderosa (governos de potências, por exemplo), está com medo e “paranóica”, a imprensa também tende a reproduzir o medo e a “paranóia”, e devemos ter muito cuidado com o que lemos. No caso, um relatório recente da AIEA mostrou que no Irã há mais de 30% a mais de urânio com baixo enriquecimento do que se acreditava - algo que assusta os que temem uma arma nuclear iraniana. Por causa de uma interpretação apressada de uma resposta desastrada de um funcionário, transformou-se isso numa bomba.


Veja você mesmo

Matérias de jornais brasileiros sobre o assunto podem ser encontradas no site da seleção de notícias do Ministério das Relações Exteriores:
http://www.mre.gov.br/portugues/noticiario/nacional/index3.asp
Coloque “21/02/09” na “Data inicial”, a mesma coisa na “Data final” e “Irã” no campo “Palavra-chave”. Aparecerão as matérias do Irã de vários jornais brasileiros daquele dia. Para a mídia estrangeira, faça o mesmo aqui:
http://www.mre.gov.br/portugues/noticiario/internacional/index3.asp
sendo que Irã em inglês é “Iran”.

Esta matéria do The Guardian (em inglês) neste link tem uma das contradições mais frontais entre seu conteúdo e sua manchete, que é “Irã enriqueceu urânio suficiente para fazer a bomba, diz AIEA”. Apesar do título, no corpo da matéria eles explicam direitinho o que a AIEA realmente disse...

O que me chamou a atenção para essa incongruência da imprensa foi esta matéria no blog da revista estadunidense Physics Today, em inglês (que comenta outro blog, do químico Cheryl Rofer). Donde, outra conclusão interessante: importante saber inglês. Pode-se, então, livrar-se um pouco da seleção de assuntos e das interpretações que a mídia nos impõe, e pensar com nossa própria cabeça.

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