quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Percepções sobre a história da física nuclear no Brasil

Da esquerda para a direita: Sérgio Mascarenhas, Marcelo Damy,
José Goldemberg e Oscar Sala. De pé, Ernst Hamburger
. Fonte: Pion.

Uma das riquezas dos depoimentos pessoais são os registros de percepções coletivas reinantes no passado, que às vezes influenciaram fortemente os acontecimentos e que em geral não podem ser captadas pela mera leitura dos livros de história. Uma palestra rica em impressões sobre o desenvolvimento da física nuclear nos anos 1940 e 1950, feita por alguém que participou ativamente do processo como pesquisador, foi dada pelo físico e ex-ministro da Ciência e Tecnologia José Goldemberg, no evento “Pioneiros da física nuclear no Brasil”, na Universidade de São Paulo (USP) em 15 de setembro. Foi um conjunto de seminários em homenageou os cientistas Marcelo Damy de Souza Santos (1914-2009) e Oscar Sala (1922-2010), de grande importância no desenvolvimento da física nuclear no Brasil. As palestras foram realizadas por diversos pesquisadores que conheceram bem os dois físicos e caracterizou-se por depoimentos pessoais sobre suas vidas e seus trabalhos.

Goldemberg declarou querer transmitir aos mais jovens suas impressões daquela época, ainda que outras testemunhas oculares pudessem ter percepções diferentes (como é normal acontecer nesses casos). A primeira foi sobre como era ser físico no Brasil naquele período – algo importante para se compreender o significado dos trabalhos de Damy, Sala e outros. “A física, na ocasião, era uma atividade para pessoas abnegadas”, disse o ex-ministro. “Não havia qualquer possibilidade de progresso financeiro ou de carreira.” Os que vinham, disse, “enfrentavam problemas com suas famílias, que achavam que eles deveriam fazer engenharia.” Era como escolher estudar filosofia nos dias de hoje, comparou.


O “milagre” de 1934

A pesquisa em física como a conhecemos tinha acabado de nascer no Brasil. Costuma-se identificar como o pai dessa área no nosso país o físico Gleb Wataghin (figura ao lado), nascido na atual Ucrânia e que chegou na USP em 1934. De fato, ele introduziu em São Paulo a pesquisa sistemática nessa ciência, inicialmente em raios cósmicos e, logo depois, na física nuclear, assuntos em efervescência na época.

Não era apenas uma questão de formação de pessoal e de mudança de mentalidade. Simplesmente ainda não havia aqui os equipamentos necessários. Segundo Goldemberg, essas máquinas foram construídas “em condições extremamente heróicas” e de “sacrifício pessoal” por gente como Damy e Sala, sob a orientação de Wataghin. Outro palestrante, o físico Ernst Hamburger, contou que o historiador da ciência canadense Lewis Pyenson, numa conversa com ele na Itália, qualificou de “milagre” a súbita explosão da física no Brasil após 1934, quase a partir do nada.

Continuando a descrever das percepções da época, Goldemberg contou que “havia uma mística em se construir as máquinas. A geração nova de físicos é diferente, querem usar as máquinas, fazer experimentos.” Assim, os equipamentos construídos por Damy e Sala “criaram condições para que seus sucessores, estudantes seus, conseguissem efetivamente fazer física.”

Damy, em particular, adorava construir aparelhos desde muito cedo – já ganhava dinheiro consertando rádios nos seus primeiros tempos de universidade, conforme a palestra do físico Paulo Reginaldo Pascholatti. Construiu o primeiro reator nuclear do Brasil e o primeiro betatron nacional, um tipo de acelerador de partículas (equipamento usado para se investigar a física das partículas suabtômicas). Sala, por sua vez, construiu o primeiro desses aceleradores feito fora dos paises desenvolvidos, do tipo van der Graaf. Para tudo isso era necessário também muita habilidade administrativa. Damy “tinha a capacidade gerencial e os contatos necessários para fazer essas coisas acontecerem”, avaliou Goldemberg. Sala destacou-se em toda a carreira pela grande capacidade de articulação em política científica e de formar pessoas, como mostrou muito bem a palestra de Alejandro Szanto de Toledo.


O papel da mística e do glamour

Para decidir que a melhor opção para o Brasil era o betatron, Damy e Wataghin percorreram vários laboratórios dos EUA. Quem pagou sua viagem foi a Fundação Rockfeller. O que levou a Fundação a decidir por esse financiamento? Entre vários fatores, Goldemberg arrisca que um componente importante foi novamente uma percepção coletiva: “Na época, havia um grande romantismo em relação à radioatividade. Hiroxima e Nagasaki deixaram muitas pessoas chocadas, mas havia mesmo assim uma grande mística.” Muita gente encantava-se com especulações sobre eletricidade extremamente barata, aplicações na medicina etc. “Isso fez com que organizações como a Fundação Rockfeller começassem a apoiar o desenvolvimento em física nuclear.”

Esse glamour pode ser observado também no comportamento da própria classe política brasileira. Por volta de 1950, “havia uma mística em produzir-se radioatividade.” Realizar isso no Brasil era algo que espantava as pessoas, causando uma impressão como se teria hoje caso fosse feito no Zimbábue, segundo uma comparação do ex-ministro.“Os políticos ficavam impressionados. Apareciam altas autoridades em experimentos de produção de radioatividade. O que os fascinava era que a [atividade] de compostos radioativos caía com o tempo, o que podia ser visto com o contador Geiger [instrumento para se medi-la]. Era uma coisa misteriosa.”

Os outros palestrantes além dos já citados foram: Odair Gonçalves, Iuda Goldman, Shigueo Watanabe, Claudio Rodrigues, Dirceu Pereira, Alinka Lépine e Mahir Hussein.


Veja também:

Folder do evento (PDF)

Edição da Ciência & Cultura com vários textos sobre Oscar Sala (2010)

Entrevista com Marcelo Damy de Souza Santos por Amélia Imperio Hamburger publicada na Ciência Hoje (1992).

Artigo de Roberto Salmeron sobre Gleb Wataghin na Revista de Estudos Avançados da USP (2002).

Esta biografia de Gleb Wataghin, feita por Enrico Predazzi na Itália, fala também de seus tempos naquele país.