domingo, 15 de julho de 2012

O bóson de Higgs: teorias novas à vista?

Os cientistas procuraram avidamente o bóson de Higgs para verificar uma previsão teórica chave do Modelo Padrão - como é chamada a teoria atual da física das partículas subatômicas (a propósito, se você não tem a mínima ideia do que seja o bóson de Higgs, talvez os primeiros parágrafos deste texto do Ciências e Adjacências o ajudem). Parece que no último dia 4 o encontraram mesmo, em um aparelho de 9 bilhões de dólares, o LHC, em Genebra. A coisa interessante é que, ao invés de confirmar a teoria, ele pode estar dizendo que ela não está muito correta e, ainda por cima, mostrando como melhorá-la.

O caso é que parecem existir algumas discrepâncias entre as previsões do Modelo Padrão e o comportamento do Higgs esperado pela teoria. Elas estão justamente naquilo que identifica se a partícula detectada é mesmo o bóson de Higgs: o modo como ela "decai" - como se transforma em outras partículas. O bóson de Higgs não é constituído por partículas menores, ele é uma "partícula elementar"; porém, mesmo partículas elementares podem se transformar em conjuntos de outras partículas, que aparecem por transformação de energia em matéria.


Bóson de Higgs x Modelo Padrão

O bóson de Higgs é produzido dentro do LHC a partir de colisões entre prótons extremamente violentas. Porém, dura muito pouco tempo e decai em outras partículas antes mesmo que possa alcançar os detectores do aparelho. O que os detectores permitem observar são essas partículas secundárias; a partir delas (quais são e de quanto são suas energias), pode-se inferir informações preciosas sobre a partícula que as originou.

Bem, em que partículas o Higgs decai? Há várias possibilidades (chamadas tecnicamente "canais"). As principais são essas cinco:
  • Um quark bottom e um antiquark bottom
  • Um partícula tau e uma antitau
  • Um par de fótons
  • Uma partícula W e uma antipartícula W
  • Um par de partículas Z 
Não se assustem com os nomes; são apenas membros da pequena fauna de partículas elementares disponíveis na Natureza. O importante é que são cinco "canais" e cada um contém um par de partículas. Para ser preciso, a maioria delas também decai em outras "terciárias" e essas, sim, serão detectadas. Pois bem, as energias dessas partículas secundárias (e "terciárias") deveriam coincidir razoavelmente com as previstas pela teoria, certo? Mas veja só a figura abaixo, que mostra as distâncias entre os dados encontrados pelo LHC e as previsões teóricas. A previsão teórica é representada pela barra verde vertical; os resultados experimentais são os quadrados pretos.

 Resultados teóricos (linha verde) e experimentais (quadrados pretos) 
do LHCpara os decaimentos do bóson de Higgs. Adaptado dos 
slides do seminário de Joseph Incandela no 
CERN, 04/07/2012, pág. 100. Link

Entendamos essa figura. Para os dois últimos casos (W e Z), os quadrados pretos caem dentro da faixa verde. Isso significa que os dados experimentais caíram dentro da "margem de erro" das previsões, de 68%. A margem de erro aqui funciona de modo análogo à margem de erro em pesquisas de eleições (se você compreender como funcionam as margens de erro de eleições, estará compreendendo também um importante aspecto das pesquisas sobre física, inclusive sobre o bóson de Higgs! Há uma boa explicação neste texto do Brasil Escola). No caso acima, fala-se em "nível de confiança" ao invés de margem de erro. Isso porque a interpretação corrente para ela é a seguinte: se o nível de confiança do resultado de um conjunto de dados experimentais é de 68%, significa que há 68% de probabilidade de esse resultado não ser uma coincidência fortuita, mas sim um aspecto concreto da realidade física. Bem, 68% não é nada tão grande; assim, cair um pouquinho fora dessa margem não é tão terrível. Mas a coisa muda de figura se cair muito fora.

A espessura da faixa verde indica o nível de confiança da previsão teórica; as barras vermelhas dos dois lados de cada quadrado preto indicam o nível de confiança dos resultados do LHC. Bem, os dados com W e Z parecem concordar bem com as previsões do Modelo Padrão, pois estão dentro do nível de confiança da teoria. Mas olhe só os outros. Parecem cair bem fora.

Na verdade, os dois casos de cima (bottom e tau) não são tão impressionantes, porque, segundo Joseph Incandela, ainda não há dados disponíveis em número suficiente para que esse resultado possa ser considerado preciso o bastante. Mas o LHC vai continuar funcionando e produzir dados mais confiáveis até o fim deste ano. Na analogia com a pesquisa eleitoral, seria o equivalente a entrevistar mais e mais pessoas, para diminuir a incerteza das previsões.


O trabalho do LHC até o fim do ano (ou um dos principais)

O que acontecerá é que, quanto mais dados, mais estreitas ficarão as barras vermelhas, pois maior o seu nível de confiança. Na verdade, o que realmente importa é se as barras vermelhas alcançam ou não a faixa verde (note que, no caso do tau, eles só encostam; já no caso do fóton, sequer chegam a tanto). Se, até o fim do ano, os quadrados ficarem onde estão, então as barras vermelhas se afastarão da faixa verde e a discrepância experimento-teoria ficará cada vez maior. Mas pode ser que até lá os quadrados pretos tenham se deslocado para dentro da faixa verde, indicando que sua estranha posição atual seja devida apenas a falta de precisão. Mas pode ser que não.

De qualquer forma, mesmo se o desvio sobreviver ao aumento da precisão, pode ser necessário fazer apenas alguma adaptação pequena na teoria, mantendo sua essência. Há inclusive várias alternativas já disponíveis, sendo uma das mais populares o Modelo Padrão Minimamente Supersimétrico (MSSM).

O caso do fóton, o terceiro de baixo para cima, é o mais problemático, porque ele é o que possui dados mais claros. Na verdade, os decaimentos do fóton, do W e do Z foram fundamentais para que se comprovasse que o bóson é mesmo o de Higgs, estando o fóton em primeiro lugar.

Mas falar de "distância grande" é muito vago; de quantos por cento estamos falando? É suficiente para culparmos a teoria? Na verdade, não. Citemos números. Quando a barra vermelha encosta na faixa verde, como no caso do tau, a probabilidade de o resultado experimental cair tão distante do teórico e mesmo assim a teoria ainda estar correta é de apenas 4,5%. Pode-se dizer que há 4,5% de chance de dados mais precisos no futuro levarem o quadrado preto do tau para dentro da faixa verde. Por outro lado, pode-se dizer que há 95,5% de chance de estarmos vendo sinais de fenômenos físicos desconhecidos. No caso do fóton, um pouco menos, pois está um pouco mais distante.

Por isso, os cientistas estão cautelosos e preferem esperar novos dados. Pois, se 95,5% pode parecer muito, para os cientistas é muito pouco. Para se ter uma ideia, o padrão para se considerar uma descoberta como "certeza científica" é um nível de confiança de nada menos que 99,99995% (tecnicamente, diz-se um "nível de confiança de cinco sigmas" - o de 68%, é de um sigma; o de 95%, usado em pesquisas eleitorais, é de dois sigmas). Há um longo caminho até alcançar esse número. Mas note que estou falando apenas dos experimentos de um dos dois grupos que obervaram o provável Higgs, o CDS. Há também o ATLAS, que observou resultados semelhantes (no início deste texto, aliás, há uma figura do detector do CDS - compare seu tamanho com o do homem vestido de azul ardósia na parte inferior).

Há ainda uma distância incômoda na massa medida do bóson de Higgs, de 125,3 GeV (gigaelétron-volts, uma unidade de medida de energia apropriada para partículas subatômicas, que pode também, com um pouco de "abuso de linguagem" corrente entre os físicos, ser usada para massa). A teoria não prevê, na verdade, a massa do bóson, mas ela contém uma relação entre ela e a massa de duas outras partículas, o W e o quark top (este observado apenas em 1995). A partir dessa relação e das massas dessas duas senhoras, a massa do bóson deveria ser de 94 GeV. Mas lembremos que o que importa não são tanto os números em si, mas as margens de erro ao seu redor. Nesse caso, o resultado do LHC caiu bem em cima do limite da margem de erro de um sigma da previsão "teórica". Tecnicamente, isso não invalida a teoria, mas alguns cientistas estão preocupados (ou excitados!) e esperam ansiosamente pelos dados mais precisos dos próximos meses.


Em busca dos cinco sigmas

Voltando aos sigmas, o LHC demorou tanto para apresentar seus resultados em boa parte justamente porque esperava que os dados se acumulassem o suficiente para alcançarem os cinco sigmas de confiabilidade para a existência do bóson de Higgs. Quando Incandela, visivelmente nervoso, fez seu seminário no dia 4, foi apresentando os dados do decaimento do Higgs em fótons, depois para o decaimento nas partículas Z, depois nas W - e, à medida que ia avançando, o nível de confiança estatístico aumentava, pois a possibilidade de a concordância com as previsões teóricas serem apenas coincidência ficava obviamente cada vez menor. Quando chegou no Z, o nível de confiança alcançou 5 sigmas. Nesse momento, ele foi interrompido por uma salva de aplausos que pareciam não querer terminar nunca. Os cientistas presentes haviam compreendido que aquilo significava, finalmente, a tão esperada descoberta do Higgs.

Incandela teve que interromper os aplausos continuando a falar. O vídeo está no Youtube, que inclui também o seminário de Fabiola Gianotti, do ATLAS (e, no final, um depoimento do próprio Peter Higgs, um dos cientistas que previram a existência do bóson com seu nome). No entanto, quando Incandela terminou de falar sobre os outros dois decaimentos, o nível de confiança havia baixado para 4,9 sigmas, porque os gráficos para o quark bottom e para a partícula tau não pareciam apontar qualquer relação com o bóson de Higgs. "Provavelmente devido a baixa estatística", argumentou o cientista (ou seja, devido a poucos dados).

Esperemos. No fim do ano, deveremos ter o Modelo Padrão corroborado ou então interessantíssimos e excitantes desvios que poderão apontar para fenômenos físicos ainda desconhecidos.

Obs.: Quem me deu a dica dessas discrepâncias foi a física Mara Senghi Soares, brasileira piracicabana, pesquisadora do Centro de Investigaciones Energeticas Medioambientales y Tecnologicas (CIEMAT), em Madrid, e que colabora com o LHC via CMS.