sexta-feira, 13 de março de 2009

A megafísica mega-internacional e o estranho mundo assimétrico

À primeira vista, todo mundo deveria estar muito satisfeito com a teoria moderna sobre as partículas subatômicas. Pois ela é tão boa que descreve os fenômenos a que se propõe com mais precisão que qualquer outra em qualquer área da física, antes ou depois dela. O que mais se pode querer de uma teoria? Mas o que apareceu no meio científico no último dia 4 foi o último grande lance de uma corrida entre os principais laboratório de partículas do mundo para provar que ela está errada.

Quanto mais essas tentativas falham, mais impacientes ficam os cientistas. E esta última, da qual participaram físicos de quatro instituições brasileiras, provou que a teoria é ainda mais precisa do que se achava... Mesmo assim, mataram outros coelhos e avançaram em outra corrida, agora para achar o “bóson de Higgs” – a última partícula elementar prevista pela teoria cuja existência ainda não foi comprovada.

Calma, não é daquelas situações em que se trocam gritos e tiros. Os próprios EUA, pátria do ex-maior laboratório de partículas do mundo (o Fermilab), investiu pouco mais de meio bilhão de dólares para a construção na Europa do maior de todos, o LHC – que desbancou o Fermilab. E cientistas do LHC congratularam os do Fermilab pelo seu trabalho do dia 4 e disseram que ele pode muito bem vencer a corrida pelo bóson de Higgs. O espírito é mais esportivo do que se vê em muitos esportes por aí.


Por que mexer no que está dando certo?

O motivo para toda essa pressa é que, apesar de tão preciso, o Modelo Padrão falha catastroficamente em dar conta de uns poucos fenômenos importantes, relacionados não só com partículas, mas com o Universo conhecido como um todo.

Uma delas é que o Modelo Padrão prevê que deve haver um pouco mais de matéria que de antimatéria no Universo (ou vice-versa). Bem, o que é antimatéria: a cada partícula subatômica, como elétron ou próton, corresponde uma antipartícula de carga elétrica oposta – no caso, antielétron e antipróton. Essas antipartículas formam a dita antimatéria.

À esquerda, o próton, de carga elétrica positiva, e o elétron, de carga elétrica negativa. Nas suas antipartículas, à direita, as cargas elétricas estão invertidas.



À esquerda, um átomo tem o núcleo positivo e os elétrons negativos. À direita, um átomo de antimatéria, ou "antiátomo", tem o núcleo negativo e os elétrons positivos.

Entretanto, praticamente só vemos matéria à nossa volta, pelo menos até onde os telescópios podem observar. A supremacia observada da matéria sobre a antimatéria é pelo menos um bilhão de vezes maior que o previsto pela teoria. O Modelo Padrão diz que elas deveriam estar misturadas, o que seria cataclísmico em nível cósmico, pois matéria e antimatéria, quando em contato, transformam-se completamente em radiação extremamente energética...!

Outro problema: no Modelo Padrão, há dezenas de parâmetros numéricos, como a massa das partículas, cujos valores a teoria não explica. Ninguém sabe por que a massa do elétron é (segurem-se na cadeira) 911 octilionésimos de miligrama e não um outro valor qualquer. Há outros parâmetros relacionados com as probabilidades com que certas partículas se transformam umas nas outras, dos quais falarei mais adiante, e que estão no centro da pesquisa divulgada no dia 4.

Como não se sabe como completar a teoria nem como se construir uma nova, tenta-se descobrir fenômenos inéditos ou comportamentos diferentes do previsto pelo Modelo Padrão, na esperança de que possam dar mais indícios sobre o que fazer. O problema é que, quanto mais pesquisas se realizam, mais preciso o Modelo Padrão se mostra e todo mundo continua às escuras...


Megafísica

Para fazer esses estudos, os físicos usam aparelhos enormes chamados aceleradores de partículas. Como o nome indica, essas máquinas aceleram partículas subatômicas e obrigam dois “jatos” delas a se chocarem a velocidades enormes. O acelerador do Fermilab, o Tevatron, faz prótons e antiprótons colidirem a 99,99995% da velocidade da luz – apenas 475 km/h mais lentos que ela.

O choque produz novas partículas, que são analisadas por detectores colocados ao redor. Sabendo quais as partículas produzidas, suas velocidades e as direções para as quais foram atiradas, os cientistas conseguem inferir coisas sobre como a colisão acontece, se as teorias estão corretas ou não e, caso não estejam, como fazer uma nova teoria.

Um próton e um antipróton colidem com muita energia (lado esquerdo), suficiente para produzir várias partículas após a colisão (lado direito).

Essas máquinas são gigantescas. A maior de todas, o LHC, perto de Genebra, na fronteira entre França e Suíça, é basicamente constituída de um anel circular de 27 quilômetros de comprimento com os detectores ao redor – tudo dentro de um túnel subterrâneo. Começará a funcionar no final deste ano (deveria ter começado no fim de 2008, mas um defeito provocou um adiamento). O custo total deverá chegar a cerca de 3,03 bilhões de euros (3,9 bilhões de dólares de hoje).

O Tevatron do Fermilab é o segundo maior acelerador, com um anel de 6,28 km de comprimento. Sua construção custou 120 milhões de dólares, mas vem sendo incrementado desde então.

O círculo mais ao fundo, nesta vista aéra, é o anel do Tevatron, no Fermilab. Licença

Por que ser grande é bom? Quanto maior o acelerador, maior a energia que eles são capazes de fornecer às partículas que se chocam; e, quanto maior essa energia, maior a probabilidade de encontrar coisas novas (pois pode-se explorar o que acontece com energias jamais investigadas). O LHC poderá alcançar energias sete vezes maiores que o Tevatron. O Fermilab tem motivos para se preocupar...

A concorrência às vezes aparece dentro da mesma instituição, como aconteceu no Fermilab no dia 4: duas equipes de lá divulgaram, com apenas horas de diferença, dois trabalhos sobre a observação do mesmo tipo de fenômeno, com conclusões semelhantes.

O primeiro artigo, de um grupo chamado D-Zero, foi assinado por cientistas de 81 instituições de 19 países. A primeira página e meia do artigo só tem os seus últimos sobrenomes e as iniciais. A maior parte é dos Estados Unidos, mas há também quatro instituições brasileiras, onde trabalham os 15 cientistas daqui que assinaram o texto. São elas o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF, no Rio de Janeiro), a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a Universidade Federal do ABC (de Santo André, SP) e a Universidade Estadual Paulista.

O segundo artigo, do grupo CDF (sigla em inglês para Detector de Colisões do Fermilab), foi assinado por físicos de 61 instituições espalhadas por 14 países. Não há nenhum brasileiro neste. O D-Zero contém bem mais países do Terceiro Mundo que o CDF, especialmente da América Latina (incluem Argentina, Colômbia, Brasil, Equador e México, além da Índia). Os dois grupos usam diferentes detectores do Tevatron.


A violação CP

Agora vou tentar descrever com um pouco de detalhe, mas de uma forma relativamente acessível ao leitor não-físico, no que consistiu a pesquisa feita no D-Zero e no CDF. Vou ter que apresentar vários “senhores” ao longo do texto: violação CP, forças fracas, quarks, bósons de Higgs. Preparem-se para conhecer novos amigos. Talvez dê para ter uma idéia do tipo de pesquisa que se faz na área da física de partículas e do tipo de conceitos com os quais os físicos lidam nesses estudos.

A pesquisa divulgada no dia 4 se relaciona com a limitação do Modelo Padrão sobre a enorme vantagem da matéria sobre a antimatéria. A idéia para se pesquisar isso é investigar uma das condições necessárias para que a assimetria matéria-antimatéria ocorra: a quebra, ou violação, da chamada “simetria CP”. Aqui vou ter que apresentar nossa primeira nova amiga. A simetria CP diz simplesmente que:

a) se trocarmos todas as cargas elétricas de um sistema físico (daí a letra C)
b) e ao mesmo tempo invertermos todas as posições no espaço, como na figura abaixo (“P” é de “paridade”, nome técnico para isso: “troca de paridade”)

então obteremos uma situação física perfeitamente possível e totalmente simétrica em relação à anterior.

As operações envolvidas na simetria CP. A parte A é o quadro "Mulher agachada", de Ismael Nery. Na parte B, refletiu-se a imagem num espelho vertical (espero que os fãs de Nery me perdoem). Uma nova reflexão, por um espelho horizontal, leva à parte C. As duas reflexões constituem a "inversão de paridade". A parte D representa todas as cargas elétricas de todas as partículas invertidas. Licença

Isso talvez pareça muito natural. Afinal, o que poderia mudar se simplesmente olharmos o mundo de cabeça para baixo e através de um espelho? A força da gravidade – e as outras forças – certamente não mudaria de intensidade por causa disso – no máximo, trocaria de sentido. Um átomo não se desmancharia se a carga elétrica de todas as suas partículas fossem trocadas de sinal – afinal, o sinal das cargas é uma convenção: poderiam ter definido que os prótons são todos negativos e os elétrons positivos, ao invés do contrário. A natureza não está nem aí para as nossas idiossincrasias.

Mas a natureza é estranha. Em 1964, James Cronin e Val Fitch descobriram no laboratório que as forças fracas não respeitam essa simetria! Bem, “forças fracas”... prazer em conhecer... OK, deixem-me apresentar nossa segunda nova amiga.

A força fraca é uma das forças fundamentais da natureza, ao lado das forças gravitacional, elétrica, magnética (as duas conjuntamente conhecidas como eletromagnéticas) e nuclear forte (que se relaciona com a muito falada energia nuclear). Dentre elas, é as mais desconhecida fora da física. O fenômeno mais comum de que toma parte é a radiação beta, emitida por vários materiais radioativos.

E as tais forças fracas desrespeitam a simetria CP. Muito, muito estranho. Mas fazer o quê? É assim que a natureza se nos mostra.


Conseqüências da violação CP

Ora, o caso é que essa estranha descoberta teve duas conseqüências importantes.

A primeira foi que, para incluí-la, as teorias tiveram que ser modificadas. A versão final é de 1974 e é o que chamamos “Modelo Padrão”.

A principal mudança foi “postular” a existência de duas novas partículas subatômicas, até então nunca vistas. Seus nomes são quark top e quark bottom. Hora de apresentar novos amigos pela terceira vez...

Quarks são partículas que interagem por meio da força nuclear forte. Há seis tipos: up, down, charm, strange, top e bottom. O up e o down se associam em grupos de três para formar os prótons e os nêutrons: o próton tem dois up e um down e o nêutron, dois down e um up. Os quatro outros não participam da constituição dos átomos. O que se chama normalmente “força nuclear” é a força entre prótons e nêutrons (e entre si), que é um “remanescente” da força forte entre os quarks dentro deles.


O quark top e o quark bottom previstos pelo Modelo Padrão acabaram sendo encontrados entre as partículas que aparecem nas colisões dos aceleradores mais potentes. O último, o quark top, foi detectado no Fermilab só em 1995, pelos mesmos dois grupos, DÆ e CDF – de novo, quase ao mesmo tempo.

Além disso, os diversos quarks podem transformar-se um no outro. Isso acontece, por exemplo, no momento das colisões dentro dos aceleradores. Porém, o Modelo Padrão – específico a ponto de dizer quais partículas devem existir e quais não devem – não “sabe” calcular a probabilidade de um quark se transformar em outro! Os físicos têm que medi-las no laboratório e usar como “input” para a teoria (para os mais conhecedores, estou falando da matriz de Cabibbo–Kobayashi–Maskawa).

Aliás, lembram-se de quando eu falei no começo deste texto, que há parâmetros cujos valores o Modelo Padrão não prevê, “relacionados com as probabilidades com que certas partículas se transformam umas nas outras (...) e que estão no centro da pesquisa divulgada no dia 4”? Eu estava me referindo a essas probabilidades de transformação dos quarks.

A segunda conseqüência da descoberta da quebra da simetria CP é que ela implica na assimetria entre matéria e antimatéria, vínculo que foi descoberto pelo físico russo Andrei Sakharov.

Porém, isso explica apenas uma pequenina parte dessa assimetria. Assim, deve haver ainda mais novidades ocultas na física das partículas. Para encontrá-las, muitos cientistas passaram a olhar mais de perto fenômenos que exibiam quebra da simetria CP.


Os triângulos unitários

O pessoal do DÆ e do CDF juntou-se a esse conjunto de físicos. Sua idéia foi observar quarks top produzidos na colisão entre os prótons e antiprótons do Tevatron. Afinal, o quark top está no centro do problema da violação CP (foi prevista justamente por causa dela). Talvez pudesse revelar mais coisas interessantes.

Ora, há pouco, eu disse que o Modelo Padrão não previa as probabilidades de um quark se transformar em outro. A idéia dos físicos que estudam a violação CP é concentrar-se justamente na investigação dessas probabilidades.

Mas investigariam o quê, se o modelo era silencioso quanto a elas? Acontece que, apesar de a teoria não dizer os valores dessas probabilidades, ele prevê uma relação curiosa e bem específica entre elas. E é essa relação que os físicos querem testar, comparando cálculo de teoria com resultado de experimento. A relação é: é possível desenhar triângulos com essas probabilidades. Melhor dizendo: as probabilidades podem ser combinadas em certas quantidades que formam ângulos e lados de seis triângulos diferentes, chamados “triângulos unitários”.

Físicos adoram coisas que se pode visualizar. Elas excitam a intuição e fomentam novas idéias. E é de novas idéias que os cientistas estão precisando neste momento. Concentraram-se então nesses triângulos. Assim: passaram a medir os parâmetros com os detectores dos aceleradores; aí construíam os triângulos com eles e verificavam se a figura se “fechava” ou não, como na figura ao lado. Se não se fechassem, haveria problemas com o Modelo Padrão. Caso se fechassem, haviam apenas provado que o Modelo era ainda mais preciso.




O que o Fermilab fez

Até 2007, já se havia investigado todos os lados e ângulos dos triângulos unitários, com exceção de um, chamado “Vtb” (escreve-se o “t” e o “b” porque ele se relaciona com a transformação de um quark top em um quark bottom). Para ele, havia medições indiretas e não suficientemente precisas. Tudo melhoraria se fosse possível observar a produção de quarks top individualmente, pois eles continham informação direta sobre o Vtb.

Mas quase todos os quarks apareciam em pares quark-antiquark. Os quarks solitários ocorriam, mas eram muito difíceis de serem observados, pois surgiam muito raramente no meio de uma grande quantidade de outras partículas – algo como procurar uma agulha amarela num palheiro bege. E transformavam-se em outras partículas antes que se pudesse fazer qualquer coisa.

Os aperfeiçoamentos técnicos e metodológicos permitiram distingui-lo ali no meio já em 2007. Mas foram vistos muito poucos; para conseguirem medir o Vtb com precisão semelhante ao que havia sido feito para os outros parâmetros, era preciso mais. Isso foi conseguido no último dia 4.

Os quarks continuam transformando-se em outras coisas antes de poderem serem observados – na verdade, quarks só podem ser detectados aos pares. Mas as partículas nas quais se transformam contém, nas suas velocidades e direções de movimento, uma “assinatura” do quark top. Essas partículas “secundárias” é que foram detectadas. E a assinatura do quark top isolado estava lá.

O resultado foi... o triângulo se fechou muito bem...! Melhor do que parecia se fechar até então. Bem... não foi o grande dia, não foi desta vez que o Modelo Padrão foi derrotado. Mas os cientistas descobriram algo mais.


A busca pelo bóson de Higgs

Primeiro, observar indiretamente quarks isolados é algo muito interessante, pois isso é muito difícil de ser feito. A observação de 2007 foi a primeira.

Segundo, o D-Zero e o CDF avançaram em outra corrida: para encontrar o bóson de Higgs. Eis aqui mais um quarto amiguinho para ser apresentado. Vamos lá.

O bóson de Higgs é uma partícula prevista pelo Modelo Padrão, a única cuja existência ainda não foi confirmada em laboratório. A razão é que ela é muito pesada, e quanto mais pesada uma partícula, mais difícil de ver num acelerador. Isso acontece porque os aceleradores têm que fazer as colisões produzirem as partículas – e, para se produzir partículas grandes, é preciso fazer colisões com energia muito alta. Não se sabe qual a massa do Higgs, mas em agosto do ano passado, resultados do DÆ e do CDF combinados mostraram que sua massa é pelo menos 203 vezes maior que o próton – ou seja, um pouco mais pesado que um átomo de mercúrio.

A corrida pela observação do bóson de Higgs é ainda mais intensa que a relacionada com a violação CP descrita neste texto. Esta última praticamente não aparece nos jornais; já os bósons de Higgs aparecem bastante (ainda que poucos leitores saibam o que são).

A contribuição dos resultados do dia 4 para a busca do bóson de Higgs é a seguinte. Assim como o quark top, essa partícula também só pode ser observada indiretamente. Acontece que os sinais deixados pelos quarks top produzidos individualmente mimetizam os deixados pelo bóson de Higgs. Então, um requisito para se conseguir encontrar o Higgs é entender bem os sinais dos quarks top individuais – senão, haverá dificuldade em distinguir os dois casos. Os resultados do Fermilab trouxeram esse conhecimento. Como conseqüência, um dos cientistas do próprio LHC, Paul de Jong, disse que o trabalho do D-Zero e do CDF pode levar o Fermilab a encontrar o Higgs antes.


Para saber mais:

A aventura das partículas – Site com muito boa navegabilidade com informações bem acessíveis sobre física das partículas, incluindo o Modelo Padrão e aceleradores.

Os artigos do D-Zero e do CDF (para físicos...)

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