terça-feira, 10 de maio de 2011

A vida depende de uma coincidência cósmica


Obs.: Para quem não tem muito tempo,
há uma versão curta deste post no Ciências e Adjacências.

Extraordinário, isso. Lendo um pouco de astrofísica do interior das estrelas, vi que a vida como a conhecemos só pôde aparecer por causa de uma coincidência espantosa que acontece no nível dos núcleos atômicos. Se as energias envolvidas nas reações nucleares que produzem o carbono fossem um pouco diferentes, a vida seria impossível. Explicar essa coincidência é que são elas.

Senão, vejamos. A vida na Terra é inteiramente baseada no carbono. Esse elemento químico forma as cadeias, ou esqueletos das moléculas orgânicas - proteínas, carboidratos, DNA, tudo. Aparentemente, só ele tem a capacidade de formar longas cadeias ramificadas, às vezes de milhares de átomos, que permitem a formação de moléculas imensas como a de DNA, fundamentais para qualquer vida terrestre.

Ora, tudo indica que os minutos logo após o Big-Bang só conseguiram produzir átomos de hidrogênio e hélio. Todos os outros elementos químicos tiveram que ser formados na fornalha nuclear do interior das estrelas. Inclusive o carbono.

Mas o processo de síntese do carbono nas estrelas tem características desconcertantes. Para explicar de que coincidências cósmicas estou falando, preciso entrar em mais detalhe. No nosso Sol, quase não existe carbono, só em estrelas mais pesadas. É que o Sol ainda está num estágio anterior, em que hidrogênio é transformado em hélio por fusão nuclear (é esse processo que produz a energia solar). Quando o hidrogênio chegar perto de acabar, o hélio se fundirá em berílio e em seguida em carbono, como esquematizado na figura abaixo:

Esquema da síntese do carbono no interior das estrelas. Primeiro, dois núcleos de hélio se fundem em um de berílio. Depois, o núcleo de berílio se funde com um terceiro núcleo de helio e produz o carbono.


Ou seja, o hélio sofre uma primeira fusão nuclear e produz berílio; e o berílio, por sua vez, se funde com outro núcleo de hélio e produz, finalmente, o carbono. Assim acontece em outras estrelas mais velhas observadas pelo espaço sideral afora.

Acontece que a energia do carbono é muito menor que a energia do hélio e do berílio somadas. A rigor, isso não impossibilita totalmente a formação do carbono, mas a torna extremamente improvável, de acordo com as leis que regem as reações nucleares. O carbono então praticamente nunca se formaria. Então como então pode haver tanto carbono na Terra?

Aí é que entra a coincidência interessante. O carbono, como qualquer outro núcleo, pode possuir outros estados com energias mais altas, com valores bem específicos - são os "estados excitados". Acontece que uma dessas energias é justamente muito próxima da soma do hélio com o berílio! Pronto, está salva a pátria. O que era extremamente improvável vira provável.



A segunda parte da figura anterior, mostrando que o estado excitado do carbono tem a mesma energia que a do hélio e do berílio somados.


Não há nenhuma lei da física que obrigue isso a acontecer. Ao que parece, é apenas uma coincidência. Ela foi prevista, na verdade, pelo físico britânico Fred Hoyle (1915-2001), em 1952. Ele afirmou que o carbono necessariamente deveria ter um estado excitado com essa energia, pois do contrário o carbono jamais poderia ser tão abundante na Terra. Isso foi confirmada no laboratório quatro anos depois.

Bem, coincidências assim não acontecem por acaso. Qual a razão desta?

Ninguém sabe.

Uma possibilidade vem de uma versão do "princípio antrópico": talvez as energias envolvidas sejam diferentes em várias partes do Universo e nós necessariamente só poderíamos nascer naquela região em que houvesse essa coincidência.

Outra possibilidade é que as energias variem aos poucos com o tempo. Como parece que não variaram tanto do Big-Bang para cá, isso só faz sentido em teorias alternativas em que o Universo é cíclico, com vários Big-Bangs. Necessariamente só poderíamos nascer numa época em que essa coincidência ocorresse.

A coisa interessante é que essas energias dependem de parâmetros chamados "constantes fundamentais da natureza" (como a constante de Planck e a velocidade da luz no vácuo), bem como das massas e cargas elétricas das partículas subatômicas como o elétron e o próton. Até onde se pôde observar, todas essas quantidades não mudam nem no espaço nem no tempo. Mas há várias especulações sobre se poderiam variar.

De qualquer forma, é um mistério muito curioso - não tanto pelo mistério em si, mas porque nele mora a razão por estarmos aqui.

P.S. - O tal estado excitado do carbono, chamado "estado de Hoyle", ainda é objeto de estudos. Acabou de aparecer na Physical Review Letters um trabalho no qual, pela primeira vez, se conseguiu calcular sua energia com cálculos teóricos usando supercomputadores. Um texto mais acessível sobre isto no blog Astropt e um mais técnico no blog Physics, da American Physical Society. O artigo original tem download livre (em PDF).

3 comentários:

  1. Olá Roberto,
    No livro Big Bang, do Simon Singh, tem uma história muito boa de como o Hoyle convenceu um físico experimental na California a verificar em laboratório a ressonância pra formar carbono. No começo o cara ficou até assustado com aquele teórico maluco entrando em seu laboratório e dizendo o que ele devia fazer. Mas ai eles fizeram a experiência e viram a ressonância...

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  2. Olá, Igor. Acho muito interessantes esses momentos inspirados de grande "confiança no taco" - o cara vislumbra algo por argumentos muito simples e gerais e eis que a coisa está lá, como previu...! Obrigado pela referência.

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