Os
cientistas procuraram avidamente o bóson de Higgs para verificar uma
previsão teórica chave do Modelo Padrão - como é chamada a teoria atual
da física das partículas subatômicas (a propósito, se você não tem a
mínima ideia do que seja o bóson de Higgs, talvez os primeiros
parágrafos
deste texto
do Ciências e Adjacências o ajudem). Parece que no último dia 4 o encontraram mesmo, em um
aparelho de 9 bilhões de dólares, o LHC, em Genebra. A coisa
interessante é que, ao invés de confirmar a teoria, ele pode estar
dizendo que ela não está muito correta e, ainda por cima, mostrando como
melhorá-la.
O caso é que parecem existir algumas
discrepâncias entre as previsões do Modelo Padrão e o comportamento do
Higgs esperado pela teoria. Elas estão justamente naquilo que identifica
se a partícula detectada é mesmo o bóson de Higgs: o modo como ela
"decai" - como se transforma em outras partículas. O bóson de Higgs não é
constituído por partículas menores, ele é uma "partícula elementar";
porém, mesmo partículas elementares podem se transformar em conjuntos de
outras partículas, que aparecem por transformação de energia em
matéria.
Bóson de Higgs x Modelo Padrão
O
bóson de Higgs é produzido dentro do LHC a partir de colisões entre
prótons extremamente violentas. Porém, dura muito pouco tempo e decai em
outras partículas antes mesmo que possa alcançar os detectores do
aparelho. O que os detectores permitem observar são essas partículas
secundárias; a partir delas (quais são e de quanto são suas energias),
pode-se inferir informações preciosas sobre a partícula que as
originou.
Bem, em que partículas o Higgs decai? Há várias possibilidades (chamadas tecnicamente "canais"). As principais são essas cinco:
- Um quark bottom e um antiquark bottom
- Um partícula tau e uma antitau
- Um par de fótons
- Uma partícula W e uma antipartícula W
- Um par de partículas Z
Não se assustem com os nomes; são apenas membros da pequena
fauna de partículas elementares disponíveis na Natureza. O importante é
que são cinco "canais" e cada um contém um par de partículas. Para ser
preciso, a maioria delas
também decai em outras "terciárias" e essas, sim, serão detectadas. Pois
bem, as energias dessas partículas secundárias (e "terciárias")
deveriam coincidir razoavelmente com as previstas pela teoria, certo?
Mas veja só a figura abaixo, que mostra as distâncias entre os dados
encontrados pelo LHC e as previsões teóricas. A previsão teórica é
representada pela barra verde vertical; os resultados experimentais são
os quadrados pretos.
Resultados teóricos (linha verde) e experimentais (quadrados pretos)
do LHCpara os decaimentos do bóson de Higgs. Adaptado dos
slides do seminário de Joseph Incandela no
CERN, 04/07/2012, pág. 100. Link
Entendamos
essa figura. Para os dois últimos casos (W e Z), os quadrados pretos
caem dentro da faixa verde. Isso significa que os dados experimentais
caíram dentro da "margem de erro" das previsões, de 68%. A margem de erro
aqui funciona de modo análogo à margem de erro em pesquisas de eleições
(se você compreender como funcionam as margens de erro de eleições,
estará compreendendo também um importante aspecto das pesquisas sobre
física, inclusive sobre o bóson de Higgs! Há uma boa explicação
neste texto do Brasil Escola). No caso acima, fala-se em
"nível de confiança"
ao invés de margem de erro. Isso porque a interpretação corrente para
ela é a seguinte: se o nível de confiança do resultado de um conjunto de
dados experimentais é de 68%, significa que há 68% de probabilidade de
esse resultado não ser uma coincidência fortuita, mas sim um aspecto
concreto da realidade física. Bem, 68% não é nada tão grande; assim,
cair um pouquinho fora dessa margem não é tão terrível. Mas a coisa muda
de figura se cair
muito fora.
A espessura da faixa verde indica o nível de confiança da previsão teórica; as barras vermelhas dos dois lados de cada quadrado preto indicam o nível de confiança dos resultados do LHC.
Bem, os dados com W e Z parecem concordar bem com as previsões do
Modelo Padrão, pois estão dentro do nível de confiança da teoria. Mas
olhe só os outros. Parecem cair bem fora.
Na verdade, os
dois casos de cima (bottom e tau) não são tão impressionantes, porque,
segundo Joseph Incandela, ainda não há dados disponíveis em número
suficiente para que esse resultado possa ser considerado preciso o
bastante. Mas o LHC vai continuar funcionando e produzir dados mais
confiáveis até o fim deste ano. Na analogia com a pesquisa eleitoral,
seria o equivalente a entrevistar mais e mais pessoas, para diminuir a
incerteza das previsões.
O trabalho do LHC até o fim do ano (ou um dos principais)
O que acontecerá é que, quanto mais dados, mais estreitas
ficarão as barras vermelhas, pois maior o seu nível de confiança. Na
verdade, o que realmente importa é se as barras vermelhas alcançam ou
não a faixa verde (note que, no caso do tau, eles só encostam; já no
caso do fóton, sequer chegam a tanto). Se, até o fim do ano, os
quadrados ficarem onde estão, então as barras vermelhas se afastarão da
faixa verde e a discrepância experimento-teoria ficará cada vez maior.
Mas pode ser que até lá os quadrados pretos tenham se deslocado para
dentro da faixa verde, indicando que sua estranha posição atual seja
devida apenas a falta de precisão. Mas pode ser que não.
De qualquer
forma, mesmo se o desvio
sobreviver ao aumento da precisão, pode ser necessário fazer apenas
alguma adaptação pequena na teoria, mantendo sua essência. Há inclusive várias alternativas já disponíveis, sendo uma das mais populares o Modelo Padrão Minimamente Supersimétrico (MSSM).
O caso do fóton, o terceiro de baixo para cima, é o mais
problemático, porque ele é o que possui dados mais claros. Na verdade,
os decaimentos do fóton, do W e do Z foram fundamentais para que se
comprovasse que o bóson é mesmo o de Higgs, estando o fóton em primeiro
lugar.
Mas falar de "distância grande" é muito vago; de
quantos por cento estamos falando? É suficiente para culparmos a teoria?
Na verdade, não. Citemos números. Quando a barra vermelha encosta na
faixa verde, como no caso do tau, a probabilidade de o resultado
experimental cair tão distante do teórico e mesmo assim a teoria
ainda estar correta é de apenas 4,5%. Pode-se dizer que há 4,5% de
chance de dados mais precisos no futuro levarem o quadrado preto do tau
para dentro da faixa verde. Por outro lado, pode-se dizer que há 95,5% de chance de estarmos vendo sinais de fenômenos físicos desconhecidos. No caso do fóton, um pouco menos, pois está
um pouco mais distante.
Por isso, os cientistas estão
cautelosos e preferem esperar novos dados. Pois, se 95,5% pode parecer muito, para os cientistas é muito pouco. Para se ter uma ideia, o
padrão para se considerar uma descoberta como "certeza científica"
é um nível de confiança de nada menos que 99,99995% (tecnicamente,
diz-se um
"nível de confiança de cinco sigmas" - o de 68%, é de um sigma; o de
95%, usado em pesquisas eleitorais, é de dois sigmas). Há um longo
caminho até alcançar esse número. Mas note que estou falando apenas dos
experimentos de um dos dois grupos que obervaram o provável Higgs, o
CDS. Há também o ATLAS, que observou resultados semelhantes (no início deste texto, aliás, há uma figura do detector do CDS - compare seu tamanho com o do homem vestido de azul ardósia na parte inferior).
Há ainda uma distância incômoda na massa medida do bóson de Higgs, de 125,3 GeV (gigaelétron-volts, uma unidade de medida de energia apropriada para partículas subatômicas, que pode também, com um pouco de "abuso de linguagem" corrente entre os físicos, ser usada para massa). A teoria não prevê, na verdade, a massa do bóson, mas ela contém uma relação entre ela e a massa de duas outras partículas, o W e o quark top (este observado apenas em 1995). A partir dessa relação e das massas dessas duas senhoras, a massa do bóson deveria ser de 94 GeV. Mas lembremos que o que importa não são tanto os números em si, mas as margens de erro ao seu redor. Nesse caso, o resultado do LHC caiu bem em cima do limite da margem de erro de um sigma da previsão "teórica". Tecnicamente, isso não invalida a teoria, mas alguns cientistas estão preocupados (ou excitados!) e esperam ansiosamente pelos dados mais precisos dos próximos meses.
Em busca dos cinco sigmas
Voltando aos sigmas, o LHC demorou tanto para apresentar seus
resultados em boa parte justamente porque esperava que os dados se acumulassem o
suficiente para alcançarem os cinco sigmas de confiabilidade para a
existência do bóson de Higgs. Quando Incandela, visivelmente nervoso, fez seu seminário no dia
4, foi apresentando os dados do decaimento do Higgs em fótons, depois
para o decaimento nas partículas Z, depois nas W - e, à medida que ia
avançando, o nível de confiança estatístico aumentava, pois a possibilidade de a
concordância com as previsões teóricas serem apenas coincidência ficava
obviamente cada vez menor. Quando chegou no Z, o nível de confiança
alcançou 5 sigmas. Nesse momento, ele foi interrompido por uma salva de
aplausos que pareciam não querer terminar nunca. Os cientistas presentes
haviam compreendido que aquilo significava, finalmente, a tão esperada
descoberta do Higgs.
Incandela teve que interromper os aplausos
continuando a falar. O vídeo está no
Youtube,
que inclui também o seminário de Fabiola Gianotti, do ATLAS (e, no
final, um depoimento do próprio Peter Higgs, um dos cientistas que
previram a existência do bóson com seu nome). No entanto, quando
Incandela terminou de falar sobre os outros dois decaimentos, o nível de
confiança havia baixado para 4,9 sigmas, porque os gráficos para o
quark bottom e para a partícula tau não pareciam apontar qualquer
relação com o bóson de Higgs. "Provavelmente devido a baixa
estatística", argumentou o cientista (ou seja, devido a poucos dados).
Esperemos.
No fim do ano, deveremos ter o Modelo Padrão corroborado ou então
interessantíssimos e excitantes desvios que poderão apontar para
fenômenos físicos ainda desconhecidos.
Obs.: Quem me deu a dica dessas discrepâncias foi a física Mara Senghi Soares, brasileira piracicabana, pesquisadora do Centro de Investigaciones Energeticas Medioambientales y Tecnologicas (CIEMAT), em Madrid, e que colabora com o LHC via CMS.