sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Imagens quânticas, computadores quânticos

Aos pouquinhos, o computador quântico vai se aproximando da (ainda longínqua) realidade. Se sair da prancheta, sua velocidade deverá, para algumas aplicações, ser muitos milhões de vezes superior às máquinas modernas.

Um dos últimos avanços relevantes foi publicado no dia 12 de fevereiro, na revista britânica Nature. Enquanto a maioria das pesquisas até agora se concentrou no poder de cálculo do computador, esta tem a ver com processamento de imagens.

Mas, na verdade, o estudo do grupo de Alberto Marino, do NIST, nos Estados Unidos, tem um alcance bem maior. O que fizeram foi um aperfeiçoamento sensível na capacidade de se manipular um fenômeno físico mais geral, que é a base não só do computador quântico, mas também de outras tecnologias aparentadas e ainda sendo desenvolvidas, como o teleporte e a metrologia quânticos: o chamado emaranhamento quântico.


Um mundo emaranhado...

De fato, em todas essas tecnologias, o “dispositivo” principal é simplesmente um conjunto de partículas – elétrons, fótons – “ligadas” por um certo tipo especial de correlação, chamado “emaranhamento”. Essa correlação mantém o conjunto de partículas em um estado físico “uno”, “indivisível” – no sentido em que não é possível associar um estado físico a cada partícula individualmente; apenas ao conjunto todo corresponde um estado identificável. Uma alteração qualquer em um estado assim atinge as duas partículas simultaneamente – mesmo que estejam separadas por grandes distâncias.

Trata-se de uma das muitas consequências surpreendentes da mecânica quântica. Esta teoria foi desenvolvida entre 1900 e 1925 para substituir a “física clássica”, anterior, que não conseguia explicar fenômenos envolvendo átomos, moléculas e partículas subatômicas. Apesar das aparências – uma alteração atingindo ambas as partículas ao mesmo tempo, mesmo que distantes –, uma modificação no estado emaranhado por si só não consegue transmitir informações pelo espaço.


...e superposto

Há mais. Além de poderem emaranhar-se, estados físicos quânticos podem ser superpostos (na verdade, o emaranhamento já é um tipo de superposição, como falarei adiante). Um estado físico é simplesmente uma situação em que um objeto pode estar. Por exemplo, o meu computador, neste momento, está no estado físico “ligado”. O plástico de sua carcaça está no estado físico “de cor preta”. Mas ele não pode estar ligado e desligado ao mesmo tempo, nem a mesma região de sua carcaça ser branca e preta simultaneamente!

Um partícula suficientemente pequena também não pode estar em dois estados simultaneamente. Por outro lado, pode estar numa combinação, ou superposição deles, que produz um terceiro estado, diferente. Meu computador poderia, se fosse um elétron ou um átomo, estar num estado “ligado + desligado”. Não se trata de estar ao mesmo tempo ligado e desligado: é um terceiro estado, distinto dos outros dois.

Claro que ninguém nunca viu um computador em tal situação. Ocorre que essa combinação é tanto mais instável quanto maior for a massa do objeto em questão. Tanto que a primeira superposição quântica de estados de posição no espaço de um átomo só foi obtida em 1996. Algo do tamanho de um computador “colapsaria” quase imediatamente para um dos estados, ligado ou desligado, muito antes de poder ser observada. Essa rápida evolução da superposição de estados para um dos estados individuais, por efeito de perturbações mínimas do ambiente ao redor, chama-se “decoerência”.


Um mundo inacreditável

Se isso parece difícil de engolir, saiba que mesmo físicos como Albert Einstein também não acreditavam. Mas experimentos nas últimas décadas mostraram que ele estava errado. Talvez fique mais palatável se eu falar que outra consequência da mecânica quântica é que o que chamamos, por tradição, de “partículas” comportam-se, em grande parte das situações, como ondas (é a “dualidade onda-partícula”). Ora, ondas – ondas sonoras, na água, numa corda etc. – podem passar umas pelas outras, somar-se, cancelar-se. Podem superpor-se umas às outras.

A capacidade das partículas de superporem seus estados está relacionada com isto. Do ponto de vista matemático, a superposição de dois estados de uma partícula funciona exatamente como a superposição de duas ondas comuns.

A relação entre superposição e emaranhamento é que, quando se superpõe estados de mais de uma partícula de uma só vez, pode-se obter estados emaranhados. Para a computação quântica, a vantagem desses estados é a possibilidade de se fazer cálculos maciçamente paralelos, ou seja, muitos e muitos de uma só vez.

Para aplicações assim, em que o processamento pode ser dividido em muitas partes independentes, as quais podem ser feitas simultaneamente por várias máquinas para gastar menos tempo, o computador quântico fica muitas vezes mais rápido e econômico que o tradicional (nos outros casos, não – ou seja, o computador quântico não substituirá o normal, apenas o complementará). Senão, vejamos.


Como funciona o computador quântico

Na computação clássica, cada unidade de informação, chamada “bit”, pode assumir dois valores, normalmente chamados “0” e “1”. Um exemplo simplificado: dentro do circuito da máquina, um transistor pode estar “aberto” ou “fechado”. Se mantido em um desses estados, esse transistor “guarda” essa informação – pode funcionar como uma parte da memória (obs.: no mundo real, cada “unidade” de memória é formada por pequenos conjuntos de transistores, como os flip-flops).

No computador quântico, essa informação “0” ou “1” não é guardada em transistores, mas, geralmente, em átomos. Ora, se um átomo pode estar em “0” ou “1”, então dois átomos podem estar em quatro combinações: 00, 01, 10 ou 11 (assim também, naturalmente, com transistores e flip-flops).

Porém, os átomos são minúsculos o suficiente para exibir efeitos quânticos pronunciados. Assim, eles podem estar também em superposições desses quatro estados! E os computadores quânticos são preparados justamente desta forma, com os átomos em estados superpostos e emaranhados.

A coisa verdadeiramente interessante aparece quando lembramos que os estados emaranhados comportam-se como um só e podem ser manipulados como se fosse um único estado de uma única entidade. Por causa disso, é possível fazer uma conta com vários valores de uma vez só!

Um exemplo (vá vendo a figura abaixo). Eu posso somar o número 5 com os números 10, 20, 30 e 40 de uma só vez, com um só passo (ao invés de ter que fazer quatro contas, na computação tradicional). Basta para isso aplicar a operação “soma” ao próprio estado emaranhado como um todo. Cada um dos quatro elementos (estados) do emaranhado representa um dos quatro números – 10, 20, 30 ou 40, como mostram as setas na figura.


Na figura acima, o retângulo da direita representa um estado emaranhado das quatro combinações possíveis para dois átomos. O do centro, depois da seta, os números que cada um está representando. O retângulo da direita apresenta o resultado, depois que a operação “somar com 5” for executada sobre o estado emaranhado como um todo. É necessário um só passo para executar as quatro operações, enquanto os computadores tradicionais precisam de quatro cálculos diferentes.


A velocidade do computador quântico, nesse caso, fica 4 vezes a do tradicional (grosso modo, pois há outros efeitos envolvidos). Não só: é preciso só um computador para isso. Além de ser rápido, é econômico.

Já para três átomos, há oito combinações. E o trio de átomos estará num estado superposto de todas elas. Para quatro átomos, há dezesseis, e assim por diante. Para dez átomos, já há 1.024 combinações. Com bilhões de átomos emaranhados... a velocidade (e a economia) fica, digamos, colossalmente maior!

Parece promissor! Mas há um problema. A natureza não daria algo assim de mão beijada. Ocorre que os estados emaranhados são extremamente instáveis. Uma perturbação mínima (como sua participação num cálculo computacional) os “desmancha” e as partículas passam a comportar-se individualmente de novo. Apenas nos anos 1990 foi conseguido emaranhar átomos inteiros, durante uma fração de segundo. Desde lá, porém, as coisas têm avançado rapidamente e hoje consegue-se emaranhar até trilhões de átomos, mas durante um tempo muito pequeno – e sem manipulá-los enquanto estão emaranhados.


Fazendo imagens com emaranhamento

Só falei em “cálculos” até agora. Mas um computador não faz só isso – como qualquer pessoa que jogue, navegue na Internet ou use editor de imagens sabe bem. Pois o grupo de Marino trabalha justamente com imagens. Em junho de 2008, conseguiu produzir dois raios de luz emaranhados que continham, cada um, uma imagem das letras “NT”, a primeira e a última da sigla do instituto de pesquisa onde trabalham, o NIST. As duas imagens eram exatamente o oposto uma da outra.


As duas imagens que o grupo do NIST emaranhou. Crédito: V. Boyer et al., JQI


A novidade não foi só trabalhar com imagens. Outros grupos já faziam isso, mas havia grandes dificuldades técnicas e as figuras eram muito simples. Marino mostrou que se podia fazer imagens emaranhadas com materiais de laboratório muito mais usuais e trabalhar com figuras mais complexas. Com apenas 100 pixels cada uma (é preciso começar do começo), suas imagens ainda eram de baixa qualidade – mas, enquanto até então só se conseguiam imagens como as um ponto ou de um círculo, Marino conseguiu a de um letreiro legível.


É preciso atrasar a luz

Bem, um computador precisa de mais do que emaranhar partículas ou de formar imagens com elas. Precisa de circuitos, como aqueles complicados que os computadores tradicionais têm no seu interior. Uma das coisas que são necessárias para isso, em computadores quânticos, é um jeito de controlar a velocidade do raio de luz que carrega a informação (a imagem, no caso), para que se possa fazê-lo chegar no lugar em que se queira no momento em que se queira. E, isso, sem destruir o delicadíssimo estado emaranhado.

Já se havia conseguido atrasar a luz, para as tais imagens simplórias e com equipamentos bem mais sofisticados. Mas seria possível fazê-lo com as técnicas mais simples de Marino e sem desmanchar o emaranhamento entre dois raios de luz carregando uma imagem legível? Foi isso que o grupo conseguiu há duas semanas.

Para atrasar o raio de luz, ele passa através de um pequeno recipiente com vapor de rubídio. Os átomos do vapor absorvem e reemitem sistematicamente a luz e, com isso, atrasam seu trajeto.

Controlando-se a temperatura do gás, pode-se controlar o tamanho do atraso. Conseguiram atrasar a luz de um dos raios emaranhados até 500 vezes. Deixaram o outro continuar normal para ver se era possível, com essa tecnologia, manipular apenas um deles.


Tiro pela culatra

A existência do emaranhamento quântico foi prevista em 1935 por Albert Einstein, Boris Podolski e Nathan Rosen. Mas, ironicamente, fizeram-no para desqualificarem a mecânica quântica. Pois, apesar de ser um dos fundadores da teoria quântica, Einstein fazia parte do grupo dos físicos que se recusavam a aceitar diversas de suas consequências. Queriam, então, mostrar que ela levava a situações filosoficamente inaceitáveis.

O grande cientista estava errado, mas o agora chamado “par EPR”, outro nome para “duas partículas emaranhadas” (“EPR” são as iniciais dos sobrenomes dos três físicos), acabou tornando-se um conceito fundamental em diversas aplicações práticas e teóricas. Mas haverá, ainda, muitos capítulos, pequenos e grandes, até que o desafio de estabilizar o estado emaranhado seja realizado e um processador quântico possa estar auxiliando os computadores em nossas casas.


Resumindo
  • O dispositivo principal dos computadores quânticos é um conjunto de átomos em um estado emaranhado.

  • Num estado emaranhado entre duas partículas, não é possível associar um estado físico com cada uma das partículas. Apenas se pode associar um estado ao par inteiro. Além disso, uma tentativa de alteração em uma das partículas altera o estado como um todo.

  • A superposição de estados e o emaranhamento quântico permitem que um computador quântico possa realizar operações em paralelo de forma maciça.

  • Por isso, nesse tipo de aplicação, o computador quântico pode ficar milhões de vezes mais rápido que o tradicional. Mas, para outras aplicações, não – por isso, ele não substituirá o computador digital comum.

  • O principal desafio para se construir um computador quântico comercial é superar a extrema instabilidade dos estados emaranhados.

  • O grupo de Alberto Marino, do NIST, conseguiu estados emaranhados entre dois raios de luz que transportam imagens. Conseguiu também diminuir a velocidade de um dos raios de luz de forma controlada, chegando a um atraso de até 500 vezes. Isso pode ser necessário para que se possa implementar adequadamente o emaranhamento em um computador quântico de porte.

  • A pesquisa de Marino aborda a técnica de emaranhamento e pode ter aplicação mais geral que a computação quântica, pois essa técnica é usada também em teleporte quântico e metrologia quântica.

Saiba mais

Na revista Ciência Hoje 193, de maio de 2003, saiu uma reportagem de capa sobre computadores quânticos.

Para físicos: aqui estão dois links com resumos sobre a pesquisa de Marino sobre imagens e sobre o atraso da luz.

6 comentários:

  1. Muito bem explicado Roberto.
    É bom ver as explicações de quem sabe.

    bruno

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  2. Muito bom Rapaz continue assim. Parabens de Físico para Físico

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  3. Parabens, estou aprendendo mecanica quantica de forma teorica e pratica com verdadeiro divulgador cientifico!

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  4. ROBERTO BELISÁRIO, O QUE VOCÊ NOS DIZ DA VELOCIDADE DO PENSAMENTO, DAS EXPERIÊNCIAS DE TELETRANSPORTE E DA POSSIBILIDADE DE EXISTÊNCIA DE PARTÍCULAS TÁQUIONS ?
    PODEREMOS TER VÁRIOS MÚLTIPLOS DE C?

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  5. Continue. Fica fácil entender, com as tuas palavras, o que acontece e/ou acontecerá.

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  6. Wauu..isto e caso para dizer que "Deus nao joga dados nao"

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